Memórias De Um Espectador – De 1985 a 1995

Minha vida de espectador cinematográfico começou bem cedo: com seis meses de vida, vendo “Silverado”. Há quem diga que o primeiro foi “O Nome Da Rosa”, nada mal também. Nesta minha primeira sessão perdi um sapatinho, que foi procurado sem sucesso entre as poltronas da sala. Continuei indo ao cinema, bebezinho, atrapalhando as sessões de mamãe e papai.

Se eu for pensar em qual é a lembrança mais antiga da minha vida me vem em mente duas coisas: quando segurei minha primeira fita em VHS, “Dumbo”, e quando, no Cinema Alfieri vi “Cinderela” em 1988. A cena que ficou marcada em minha memória só podia ser a de quando Cinderela perdia o sapato, naquele tapete vermelho cegante. E logo virei a cabeça, tentando entender de onde vinha a imagem: o feixe de luz gigantesco que atravessava a sala era algo que não conseguia entender. A partir de “Dumbo”/”Cinderela” cresço então devorando toneladas de filmes, na maior parte da Disney: “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, “Mary Poppins” em casa; “Mowgli – O Menino Lobo” e “Bernardo & Bianca” no cinema.

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Chega então o 1990, ano fundamental para minha cinefilia. Três os filmes extremamente marcantes daquele ano. O primeiro foi “Fantasia”, visto no Cinema Alfieri. Na época a Walt Disney tinha a mania de lançar em Home-Video somente trechos de filmes: em uma das minhas locações descubro então “O Aprendiz Feiticeiro”, em uma cópia onde vinha somente o episódio de Mickey, junto a outros dois curtas Disney. Uma fita que vi e revi dezenas de vezes. Então imaginem minha empolgação em poder ir ao cinema ver por inteiro aquele filme. Entrando na sala uma sensação de medo passa por minha espinha dorsal, ao ver o cartaz, com Mickey e atrás dele o demônio da “Noite No Monte Calvo”, episódio final do filme. Pela primeira vez em minha vida me senti totalmente absorvido por um filme. A tela do Alfieri era gigantesca e em 1.33:1, portanto o filme preenchia todo o quadro: as imagens me marcaram como nenhum filme tinha feito até então.

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Naqueles meses tinha começado a gostar de cinema live action, não especificamente infantil: na televisão passavam Charlie Chaplin e Stan Lauren & Oliver Hardy que eu adorava, além de os filmes da série “Fantozzi”. Fantozzi é um dos personagens icônicos da cultura italiana, uma mistura entre comicidade splapstick e sátira socio-política: o personagem era interpretado por Paolo Villaggio. Ao saber então que um novo filme dele estaria estreando nos cinemas, fico louco e peço para minha tia Rita me acompanhar. O filme era “Le Comiche” de Neri Parenti. Uma irresistível homenagem ao cinema mudo, com gags de Chaplin, Harold Lloyd, Lauren & Hardy revisitadas e atualizadas. Antes do filme, o trailer de “Total Recall” de Paul Verhoeven me assusta como nada. Recuperado o susto, o filme começa: preto e branco, com a dupla Paolo Villaggio e Renato Pozzetto atravessando a tela como em “A Rosa Púrpura Do Cairo”. Era óbvio que eu não conhecia nada de Allen, Sennett e outros que inspiraram o filme. Mesmo assim foi um marco total em minha infância. Lembro a sala lotada, com risadas por toda a parte. Volto então para casa, chocado, maravilhado por ter visto algo de tão mágico.

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Algumas semanas depois acontece o golpe final. Minhas tias me levam ao cinema para ver um filme. Na confusão da ida ao cinema, eu não entendia o que estava indo ver: um filme, um desenho? Não sabia que minhas tias estavam me levando para viver a maior aventura da minha infância cinematográfica: eu estava indo ver “Dick Tracy” de Warren Beatty. Com todos os primos então, entramos no extinto Nuovo Cine. O giantesco cartaz do filme, desenhado, com as coloridas lobby cards me inquietam e ao mesmo tempo encantam. Entrando na sala então, acontece o inesperado para mim: o curta  “Roller Coaster Rabbit” abre o filme, quase como amenizando o susto e o medo que tinha por não saber o que iria viver daí em diante. O desenho termina, o logo da Touchstone preenche a tela e a partir daquele instante eu não entendo mais nada. As cores de Vittorio Storaro, a presença de Beatty, a violência, os tiros, a beleza maldita de Madonna e sua voz, o candor de Tess, a trilha de Danny Elfman, o rosto horroroso dos vilões, Al Pacino, as canções de Stephen Sondheim. No final do filme, com o dolly/quadro e a trilha de Elfman senti algo que nunca tinha sentido antes disso. Ficamos escutando os créditos finais: fiquei hipnotizado pelo letreiro subindo ao som de “More”. A partir de então, a casa cai, literalmente. Não penso em outra coisa senão neste filme, escuto repetidamente “More” e “Sooner Or Later”, peço para minha mãe me levar para ver o filme novamente e depois para meu pai, separadamente. Lembro de quando eu admirava os anúncios do filme nos jornais e um dia vejo na casa da minha tia uma revista chamada CIAK, com Dick Tracy na capa. CIAK é ainda hoje a revista sobre cinema mais importante da Itália, então lá vou eu, pedindo pros meus pais comprarem o CIAK pra mim.

Naquele tempo eu tinha 5 anos, ainda não tinha aprendido a ler, então folheava insistentemente aquela revista. O primeiro CIAK que possuí, tinha na capa “The Sheltering Sky” de Bernardo Bertolucci; matérias sobre “Esqueceram De Mim” e “Misery”. Em anexo, tinha uma fitinha com trilhas sonoras, que escutava sempre que podia: “Mission” de Morricone, “Furyo” de Sakamoto, “Betty Blue” entre outros. Um dia então, fui onde minha mãe e pedi a ela um favor: eu queria ler o que tinha escrito na revista de cinema, queria saber sobre o que falava. Aprendi a ler então, vendo cartazes de cinema. A partir daquele mês nunca perdi um número daquela revista, que leio até hoje.

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Em 1991, alimentado por revistas de cinema e fitas que eu gravava ou minhas tias me presenteavam, afirmei meu amor pelo cinema. Eu adorava a comédia à italiana, portanto importantíssima naquele ano foi a visão de “Johnny Stecchino”, que vi no Nuovo Olimpia, levado por minha mãe. Houve também a indicação ao Oscar de Dick Tracy: minha mãe gravou o Oscar para mim e fiquei extremamente encantado por aquele mundo de música, danças, luzes e trechos de filmes impressionantes, como “Goodfellas” e “The Godfather III”: nunca poderia imaginar que estes filmes estariam entre os mais importantes de minha vida. Enquanto isso, lia as revistas CIAK, colecionando os cartões com cartazes de filmes. Entre eles os que mais me fascinavam eram: “Whore” de Ken Russell, “La Riffa” com Monica Bellucci, “Lanternas Vermelhas” de Zhang Yimou, “JFK” de Stone, “La Carne” de Marco Ferreri”, “Dança Com Lobos” de Costner. Tive a sorte de ver no cinema naquele ano filmes como “A Pequena Sereia”, “Um Tira No Jardim De Infância”, “As Tartarugas Ninjas”. Vendo então em um jornal o cartaz de “Paprika” de Tinto Brass sinto uma extrema vontade em assistí-lo: pensava que fosse uma comédia e eu não conseguia entender porque em cima da bunda de Deborah Caprioglio tinha escrito “18 Anos”.

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Chega então o 1992: ano de “Batman Returns”. Eu estava de férias em São Luís e minha tia Maria me levou ao cinema para assistí-lo. Cine Passeio, na Rua Grande. A obrigo a ir ver o filme duas vezes, virando assim uma outra obsessão. Eu tinha pavor por filmes de terror ou que fizessem assustar e até então não tinha visto nada de tão excitante e ao mesmo tempo tenebroso. Visto hoje, o filme mantém sua força, mantendo-se o filme mais sólido de Burton. O trailer de “Instinto Selvagens” visto antes de Batman havia provocado um extremo interesse: eu lia tudo que eu encontrava sobre o filme, mas consegui vê-lo somente em 1994. “Sister Act” foi outro filme que adorei, confesso que não o revejo faz anos. Foi também o ano em que iniciei a ir ao cinema sozinho: meu pai me deixava na porta do Cinema Alfieri, em frente ao consultório dele e vinha me buscar na hora em que o filme ia acabar. Comecei esse hábito com “Sognando La California”, obra-prima de Carlo Vanzina, foi entre os meus favoritos do ano: visto 3 vezes. “A Bela E A Fera”, que ficou em cartaz por 3 meses, visto 4 vezes. “A Morte Lhe Cai Bem”, “Under Siege”, “Far and Away”, “Aristogatas”, “Singles”, “Army Of Darkness”, “1492”, “Universal Soldier”, “Peter Pan”, “Toys”, “Wayne’s World”, “Parente é Serpente” estão entre os vistos no cinema.

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Em 1993, já submerso em uma cinefilia-doença, começo a ir bem mais ao cinema. Se eu tivesse que escolher o filme mais importante daquele ano, inevitavelmente a escolha iria cair sobre “Jurassic Park”. Passando por cima do fascínio marketeiro de bonecos, revistas, livrinhos, o filme me pegou como poucos. Visto 4 vezes no cinema, sempre com lágrimas nos olhos. Entre os filmes vistos naquele ano no escuro da sala de cinema estiveram: “Aladdin”, “Cliffhanger”, “The Man Without A Face”, “Demolition Man”, “Last Action Hero”, “Branca de Neve e os sete anões”. No final daquele ano, minha família muda-se para o Brasil. Esta peregrinagem durará um ano e meio, suficiente para alimentar bem mais e melhor esse amor.

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Então em 1994 nos mudamos em Belém; por minha sorte, minha casa encontrava-se atrás de três salas de cinema: Cinema 1, Cinema 2, Cinema 3. O cinema 1 e 2 exibia blockbusters principalmente da Columbia; já o Cinema 3 viraria o meu favorito: exibindo cinema de arte, europeu e filmes em segunda mão de outras salas, exibidos antes de serem lançados em vídeo. Aquelas salas tornaram-se um lugar mágico, junto a todas as outras daquela cidade: Olimpia, Palácio, Nazaré, Cine Castanheira. Lá eu descobriria Almodovar, Kieslowski, Monicelli. Assistia praticamente TUDO que entrava em circuito na cidade: não existia implicância da Classificação Indicativa pelas salas, então não perdia nada. Se eu tivesse que relembrar de filmes que marcaram aquele ano, não poderia não falar de “Adeus Minha Concubina”. A fotografia, a crueldade, a violência, o amor proibido que não conseguia entender. A música, os gritos, a tensão do fogo no final. Tudo isso foi extremamente contagiante. A partir de então, não perderia mais nenhum filme “autoral” exibido no Cinema 3: “A Better Tomorrow” de John Woo, “A Liberdade É Azul”, “Mister Hula Hoop”. Em férias na Itália, durante a cruelíssima copa do mundo, vi “Dellamorte Dellamore”. “Os Flintstones”, “O Maskara”, “O Corvo”, “Quatro Casamentos E Um Funeral” estavam entre meus favoritos. Houve também a descoberta do terror, graças a “Frankenstein De Mary Shelley”.

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Chega então o 1995. Metade do ano então eu passei no Brasil. Deu para poder ver “Priscilla – A Rainha Do Deserto”. O trailer anunciava “E se os alienígenas chegassem em sua cidade, o que aconteceria?”. Então fui vê-lo, com minha extrema inocência, pensando que fosse um filme de alienígenas. Depois de alguns minutos pensei “Talvez seja um mundo paralelo onde homens gostam de homens que se vestem como mulheres”. Virou um dos meus filmes favoritos, fui ver no cinema 4 vezes. Naquele ano houve o desespero: queria muito ver “Pulp Fiction”, mas minha mãe não deixou ver. Tive que esperar 3 anos. “Forrest Gump” é um dos meus favoritos daquele período também, junto com “A Fraternidade é Vermelha”. Foi o ano em que vi “Kika”, no Cinema 3. Foi quando tive que fazer duas horas de fila para poder ver “Street Fighter” e quando vi “Ovos De Ouro” duas vezes seguidas. Vi “Entrevista Com O Vampiro”, o fascinantíssimo “Pret-a-Porter”, “In The Mouth Of Madness”, “A Morte E A Donzela”, meu primeiro Polanski, “Ed Wood”. Voltei então para a Itália, sem antes dar a despedida ao Cinema 3. O último filme visto lá foi “Lendas Da Paixão”. Aquela sala, hoje, não existe mais.

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Então 1995.2. Volto para morar definitivamente lá. A criança de 10 anos e na quinta série vê naquele tempo: “Il Mostro” de Benigni e “O Carteiro E O Poeta”, dois filmes que marcaram fortemente meu amor pelo cinema. “O Carteiro E O Poeta” foi o primeiro filme que me deixou bem claro o conceito de amor. O assistia incansávelmente, junto a “Nuovo Cinema Paradiso” que tinha descoberto naqueles anos. Vejo “Underground” de Emir Kusturica, como também o faroeste de Sergio Leone através os olhos de Sam Raimi em “Rápida E Mortal”. Vejo “Seven”, “Braveheart”, talvez o primeiro filme que me fez perceber o cinemascope, vejo “Dumb & Dumber”. Tento entrar no cinema para ver “Showgirls”, mas a sala tinha uma placa gigantesca com escrito PROIBIDO PARA MENORES DE 18 ANOS. Vejo “Dredd”, “La Sindrome Di Stendhal”, descubro Spike Lee com “Clockers”.

Em 10 anos então, um quadro se define. Não existiam filmes ruins: qualquer filme exibido em uma tela de cinema era maravilhoso, belo, encantador. A partir do ano seguinte, porém, gostos de definem, alguns filmes viraram “vergonha alheia”, outros nem mais quis rever, mas mesmo assim a lembrança de toda aquela maravilha permaneceu intacta.

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“And that’s that.”

E veio o 1996.

2 comentários

  1. Sério, parabéns você é um cara de sorte – teve uma infância recheada de filmes ótimos, eu infelizmente não tive a mesma sorte, meu pai me disse que eu escolhia sempre filmes ruins tipo “Os Sete Ninjas” eu eu assisti umas trezentas vezes, mas me lembro quando ele me colocou para assistir “Morte Súbita” que levo como um bom filme … mas, só porque faz parte da minha infância … muito bom pensar nos filmes que fizeram nossas personalidades.

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